Amor em tempo de Corona

Ela responde imediatamente, sem dúvida, esperando ao lado do telefone. A voz dela é calma e rouca; eu adoraria poder ver seu rosto.

“Bom dia Doutora”

Eu imagino ela de pé em um corredor de uma casa velha e sombria.

“Eu estou ligando para falar sobre o Sr. Rota. É a sua esposa?”

“Sim, Doutora. Eu sou a esposa dele.”

“Então, Sra. Rota, a situação é mais ou menos a mesma de ontem. Eu lhe disse… não é boa, de fato. Ele é bastante avançado em idade, e essa doença é muito ruim para os idosos, sabe. Além disso, ele tem a doença de Alzheimer. Ele agora está se recusando a comer, e eu realmente não acho que seria conveniente avançar nossos esforços para além de um certo ponto. Eu espero que a senhora entenda.”

“Oh, Doutora, é porque eu não estou aí. Ele precisa de mim, sabe? Somos casados há 55 anos. Meu sobrinho estava certo. Quando levamos meu esposo pro Pronto Socorro, meu sobrinho estava com medo de que meu esposo desistisse quando ele ficasse sozinho. E ele estava certo!”

“A senhora tem filhos, Sra. Rota?”

“Não, Doutora. Somos só nós dois. Fomos nós dois juntos nossa vida toda, mas temos bastante sobrinhos e sobrinhas. Poderia te pedir um favor? A próxima vez que você falar com meu esposo, por favor, fale para ele ‘Pietro, eu tenho uma mensagem da sua ‘Bigi’ – esse é o apelido que ele me chama. E por favor, diga a ele que não me deixaram ficar ali do seu lado na cama, mas que eu o amo. Só diz isso pra ele, Doutora, por favor. Lembre-se, ‘Bigi’, eu tenho certeza que vai ajudá-lo. Ele me chama assim. Ele vai entender.”

Eu mal consigo esconder a tensão em minha voz e tento avançar com a conversa; entretanto, para conseguir isso eu precisei pausar. A Sra. Rota também cai em silêncio. Então, por apenas alguns segundos, nós duas ficamos caladas, cada uma em uma ponta da linha, encarando o absoluto absurdo da situação.

De um lado, por conta das regras de contenção da pandemia, um casal que dividiu a vida inteira – incluindo os últimos anos de doloroso, implacável declínio cognitivo – estão separados para sempre nas decisivas horas finais sem ao menos terem tido tempo de entender o momento (e enquanto a Sra. Rota mesma já deve estar infectada com o coronavírus também). Do outro lado, um senhor velho e com demência sem possibilidade de se recuperar desta pneumonia ou das complicações que invariavelmente se seguiriam depois de estar preso à cama; deixado sozinho em um lugar estranho; e cercado de pessoas que ele nunca viu antes que cuidam dele inteiramente cobertos com máscaras, luvas, e trajes protetores em nome de prover a ele a suplementação de oxigênio de duvidoso proveito.

Eu poderia dizer à Sra. Rota que seu esposo não está mais respondendo a vozes e que ele provavelmente entrou em suas últimas horas de existência. Entretanto, eu deixei ela acreditar que sua mensagem seria entregue e que seu marido receberá, por minha voz, as palavras de sua amada.

Um dos aspectos mais dolorosos desta pandemia é a irremediável separação dos pacientes de suas famílias no fim de suas vidas. Geralmente isto ocorre de forma inesperada, na conturbação de uma complicação respiratória, com os sentimentos dos familiares envolvidos em um estranho mix de culpa de sobrevivente e medo enquanto eles tentam compreender o conceito de contágio e estão sobrecarregados pelo medo generalizado de uma inominável, invisível catástrofe.

À medida em que a pandemia piora – e o número crescente de pessoas que precisam de auxílio logo supera os recursos disponíveis, o tempo disponível para cada caso diminui, e o burnout de enfermeiras(os) e médicas(os) disparam – a chance de um acompanhamento decente até a morte se destaca como um dos “sinais vitais” que somos chamados a prestar atenção. Não apenas para poupar os sobreviventes de se sentirem péssimos ou para proteger a sanidade de médicas(os) mas pelo próprio significado de nossa profissão médica, de nosso “estar ali”.

Sra. Rota queria falar mais, mas eu tenho medo

de perder o controle sobre as minhas emoções. Eu tento finalizar a conversa, e ela responde “Obrigada, Doutora”. Você me cedeu um tempo para conversar. Eu estou sozinha agora, sabe?”

“Nem se preocupe com isso, Sra. Rota. É meu dever.”

Essas rodadas de ligações telefônicas para familiares é um triste ritual que nós começamos a fazer todo dia, porque é impossível para famílias em quarentena visitarem seus entes queridos no hospital. Em uma ala exclusiva do COVID, três semanas após o início de tudo, pacientes se parecem cada vez mais e mais; a única diferença relevante entre eles é proporção PaO²-FiO² deles, que frequentemente pode mudar bem rápido (e geralmente não para melhor). No entanto, de alguma forma, preciso dessa breve conversa com estranhos invisíveis, conversando diretamente com o coração de suas tristezas e medos (e os meus também).

Onde a ciência médica falha, a medicina ainda

pode prosperar. Afinal, isso, e nada mais, é a força do progresso da medicina ao longo dos séculos. Muito antes do advento de antibióticos, analgésicos e máscaras de oxigênio, o que levou os seres humanos a cuidarem dos doentes e moribundos foi o desejo de dignificar e aliviar o abandono de nossa condição humana comum.

Essa pandemia assustadora não apenas dilacerou nossa rotina hospitalar, cancelou nossos planos e derrubou nossas prioridades; também destruiu nossas famílias, atingiu nossos amigos e colegas e deixou inequivocamente claro para nossas mentes frágeis que todos estamos envolvidos na mesma luta. Somos apenas seres humanos pobres quando não nos mantemos juntos.

Até que triunfemos.

Simone V. Benatti, MD, Infectious Diseases Dep., Hospital Papa Giovanni XXIII, Piazza OMS No. 1, 24127 Bergamo, Italy; e-mail: simone.benatti@hotmail.it.

Este artigo foi traduzido por Daniel Carvalho e Maria Alice V. V. Papanicolau do original em inglês de Annals of Internal Medicine publicado em Annals.org no dia 31 de março de 2020 | Ann Intern Med. doi:10.7326/M20-1137

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