A Epidemia que fez nascer a Terapia Intensiva


Em agosto de 1952, uma epidemia assolava o mundo e apesar de todos os seus males, ela resultou num esforço heroico da comunidade médica, sobretudo em um hospital na Dinamarca, o que salvou muitas vidas, revolucionou a medicina e levou ao nascimento da medicina intensiva e o uso de ventilação mecânica fora das salas de cirurgias.

Foi a epidemia de poliomielite. O número de internações hospitalares foi maior do que a equipe já havia visto. E as pessoas continuaram vindo. Dezenas por dia. Elas estavam morrendo de insuficiência respiratória. Médicos e enfermeiros só presenciavam sem terem muito o que fazer, pois não havia equipamento suficiente.

Em 1952, o pulmão de aço era a principal maneira de tratar a paralisia que impedia a respiração de algumas pessoas com poliovírus. Copenhague foi o epicentro de uma das piores epidemias de pólio que o mundo já havia visto. O hospital admitia 50 pessoas infectadas diariamente e, a cada dia, 6 a 12 desenvolviam insuficiência respiratória. A cidade inteira tinha apenas um pulmão de aço. Nas primeiras semanas da epidemia, 87% das pessoas com poliomielite bulbar ou bulboespinhal, nas quais o vírus ataca o tronco cerebral ou nervos que controlam a respiração, morreram. Cerca de metade eram crianças.

O pulmão de aço usava pressão negativa. Criava um vácuo ao redor do corpo, forçando as costelas e, portanto, os pulmões, a se expandirem; o ar então entra na traquéia e nos pulmões para preencher o vazio. O conceito de ventilação com pressão negativa já existe há centenas de anos, mas o dispositivo que se tornou amplamente usado – o ‘respirador Drinker’ – foi inventado em 1928 por Philip Drinker e Louis Agassiz Shaw, professores da Escola de Saúde Pública de Boston, Massachusetts. Outros passaram a refiná-lo, mas o mecanismo básico permaneceu o mesmo até 1952.

Os pulmões de aço resolviam apenas parcialmente o problema da paralisia, muitas pessoas com poliomielite ainda morriam mesmo usando um. Entre as complicações mais frequentes estava a aspiração – o conteúdo da saliva ou do estômago seria sugado da parte de trás da garganta para os pulmões quando uma pessoa estivesse fraca demais para engolir. Não havia proteção das vias aéreas.

Desesperado por uma solução, o médico chefe de Blegdam convocou uma reunião. E foi aí que Bjørn Ibsen, um anestesista que retornara recentemente de um treinamento no Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, propôs uma ideia radical que mudaria o curso da medicina moderna.

Ibsen sugeriu uma abordagem oposta ao dos pulmões de aço. Sua ideia era soprar ar diretamente nos pulmões para fazê-los expandir e depois permitir que o corpo relaxasse e expirasse passivamente. Ele propôs o uso de uma traqueostomia: uma incisão no pescoço, através da qual um tubo entra na traqueia e fornece oxigênio aos pulmões, e a aplicação de ventilação com pressão positiva. Na época, isso costumava ser feito brevemente durante uma cirurgia mais longa, mas raramente era usado em uma enfermaria de hospital.

Ele recebeu permissão para experimentar a técnica no dia seguinte. A paciente Vivi Ebert, uma menina de 12 anos à beira da morte por poliomielite paralítica, foi a primeira a receber. A traqueostomia protegeu seus pulmões da aspiração e, apertando uma bolsa presa ao tubo, Ibsen a manteve viva. Ebert sobreviveu até 1971, quando ela finalmente morreu de infecção no mesmo hospital, quase 20 anos depois.

O plano foi elaborado para usar essa técnica em todos os pacientes em Blegdam que precisavam de ajuda para respirar. O único problema? Não havia respiradores suficiente.

Versões muito antigas de respiradores com pressão positiva existiam por volta de 1900, usadas para cirurgia e por equipes de resgate durante acidentes de mineração. Outros desenvolvimentos técnicos durante a Segunda Guerra Mundial ajudaram os pilotos a respirar as pressões crescentes em grandes altitudes. Mas os respiradores modernos, para sustentar uma pessoa por horas ou dias, ainda não existiam.

O que se seguiu foi um dos episódios mais notáveis, em termos de esforços manuais, da história da medicina: em turnos de seis horas, estudantes de medicina e odontologia da Universidade de Copenhague sentavam-se ao lado de cada pessoa com paralisia e os ventilavam à mão. EU DISSE À MÃO. Os estudantes apertavam uma bolsa conectada ao tubo de traqueostomia, forçando o ar para os pulmões. Eles foram instruídos em quantas respirações administrar a cada minuto e ficaram ali, hora após hora. Isso durou semanas e meses, com centenas de alunos entrando e saindo. Em meados de setembro, a mortalidade de pacientes com poliomielite com insuficiência respiratória havia caído para 31%. Estima-se que o esquema heroico salvou 120 pessoas.

Três lições principais foram tiradas dessa epidemia. Primeiro, Blegdam demonstrou o que pode ser alcançado quando profissionais de saúde se reúnem e trabalham juntos, com foco e determinação. Segundo, provou que era possível manter as pessoas vivas por semanas e meses, com ventilação com pressão positiva. Terceiro, mostrou que, ao reunir todos os pacientes que lutavam para respirar, era mais fácil cuidar deles em um local em que médicos e enfermeiros tinham experiência em insuficiência respiratória e ventilação mecânica.

Assim, nasceu o conceito de unidade de terapia intensiva (UTI). Após a instalação da primeira em Copenhague, no ano seguinte, as UTIs proliferaram. E o uso de pressão positiva, com respiradores mecânicos em vez de estudantes, tornou-se a norma.

Os primeiros respiradores forçavam as pessoas a respirar em um ritmo definido, mas os modernos percebem quando um paciente quer respirar e, em seguida, ajudam a fornecer um impulso de ar para os pulmões. O aparelho original também reunia informações limitadas sobre a rigidez ou complacência dos pulmões e dava a todos uma quantidade fixa de ar a cada respiração; as máquinas modernas realizam muitas medições dos pulmões e permitem escolhas quanto à quantidade de ar liberado a cada respiração.

Os primeiros também não “avisavam” quando eram desconectados acidentalmente, o que levou a algumas mortes, mas foi logo corrigido com a inserção de alarmes. Todos esses são refinamentos dos ventiladores originais, que eram essencialmente foles e tubos automáticos.

Alguns anestesistas e médicos intensivistas, marcam 26 de agosto como o “dia de Bjørn Ibsen” – o dia em que ele propôs usar a ventilação com pressão positiva para salvar vidas. A maioria das pessoas não tem ideia do que devemos a esse médico notável e seus colegas em Copenhague. Hoje, se ao ficarmos doentes o suficiente para lutar para respirar, de pneumonia, ataque cardíaco ou qualquer outra causa, podemos ser colocados em um respirador mecânico e sobreviver, devemos agradecer a ele.

Voltando aos dias de hoje, mesmo em tempos comuns, a demanda por leitos de UTI e respiradores pode aumentar, por exemplo, todos os anos durante a temporada de influenza. Em muitas partes do mundo, essas instalações não existem; em alguns hospitais, particularmente em países de baixa renda, o que é considerado um leito de UTI é simplesmente aquele que é equipado para fornecer oxigênio suplementar a um paciente, mas não com um respirador.

Na pandemia da COVID-19, o espectro de cuidados requer um grande uso de respiradores, porém mesmo em países com os melhores equipamentos e renda, como a Alemanha e os Estados Unidos, não se tem tantos leitos de UTI assim, o que leva a muitos profissionais apenas a assistirem pacientes morrerem ou mesmo escolher quem vive e quem morre. Isso lembra o que acontecia antes da década de 50.

Ainda não sabemos a verdadeira taxa de mortalidade por COVID-19. Isso ocorre em parte devido à terrível falta de testes generalizados em muitos países, o que dificulta a compreensão de quantos foram infectados. E também porque, até agora, a maioria dos pacientes em países de alta renda que precisaram de terapia intensiva e um respirador, tiveram ambos.

Fonte: Nature Medicine

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